Pragmatismo Pol�tico
Assim que saiu a divulga��o dos resultados do ENEM, a m�dia tratou de gritar aos quatros cantos que, dentre os 6,2 milh�es de candidatos que realizaram a prova, em torno de 529 mil obtiveram nota zero. Evidentemente, como sempre, o resultado, por muitos, foi atribu�do � suposta m� qualidade da escola p�blica brasileira, assim como ao suposto despreparo dos professores. Como professor de L�ngua Portuguesa, estudei o processo de avalia��o do ENEM � diferentemente dos jornalistas que cobrem o assunto � e vou tentar trazer um pouco de lucidez a essa quest�o.
Leia tamb�m: O jovem estudante de escola p�blica que acertou 95% do ENEM
1. Tirar nota zero n�o � sin�nimo de n�o saber escrever. Nota zero � decorr�ncia de, por algum motivo, o candidato descumprir a proposta. Eis os motivos para nota zero no caso do ENEM:
a) Fuga ao tema: esse foi o principal motivo do meio milh�o de zeros. O tema era �A PUBLICIDADE INFANTIL EM QUEST�O NO BRASIL�, portanto, n�o adiantaria fazer um excelente texto sobre o trabalho infantil, sobre a pedofilia ou sobre a viol�ncia contra a crian�a. Por mais bem escrito que estivesse, seria nota zero.
b) Escrever outro g�nero textual que n�o fosse uma reda��o dissertativo-argumentativa: se o candidato fosse um poeta, por exemplo, e escrevesse um poema bel�ssimo sobre o assunto, uma verdadeira obra de arte, mesmo assim, receberia nota zero, pois s� podem ser avaliadas reda��es dissertativo-argumentativas, ou seja, um texto que apresente e defenda um ponto de vista sobre o tema proposto, por meio de argumentos, com uma estrutura formada por proposi��o, argumenta��o e conclus�o. � muito comum o candidato escrever um texto eminentemente narrativo, o que o elimina do processo, independentemente da qualidade da narra��o.
c) Texto insuficiente: o ENEM ainda aceita textos curtos, a partir de 8 linhas (acredito que, no futuro, isso mude!). Ainda assim, alguns candidatos escrevem menos que isso e s�o eliminados, independentemente da qualidade da escrita. Isso se deve � ao contr�rio do que alguns podem pensar � n�o meramente � incompet�ncia do candidato, mas ao nervosismo ou ao mau planejamento do tempo (� uma p�ssima ideia deixar a reda��o para o final!), embora tamb�m � pouca qualifica��o do candidato em alguns casos.
d) C�pia do texto motivador: alguns candidatos, por m� inten��o (ou ingenuidade mesmo), utilizam c�pias dos textos motivadores na reda��o, o que os desclassifica do processo, mesmo que as partes n�o copiadas estejam bem escritas. Quando isso ocorre, n�o � poss�vel medir se o candidato sabe ou n�o escrever, bem ou mal, pois o texto apresentado n�o � dele. O erro n�o foi de conhecimento, mas de conduta.
e) Fere direitos humanos: o ENEM n�o aceita candidatos que escrevam contra os direitos humanos, mesmo que quase toda a reda��o seja de excelente n�vel, totalmente bem escrita. Por exemplo, se, em determinado momento, o candidato escreve que, por algum motivo, algu�m deva ser punido com algum tipo de tortura ou pena de morte, a reda��o ser� zerada.
f) Parte desconectada: em raz�o das ocorr�ncias com a reda��o que falava da receita de miojo, do hino de sei l� que time, etc., ocorridas no ano passado, houve esse acr�scimo nas situa��es que levam � nota zero no ENEM. Essa regra � razoavelmente nova, pois quase nenhum vestibular considerava isso, j� que todos os processos de sele��o partem do princ�pio da boa-f� do candidato. Esse princ�pio precisou ser rompido n�o pela desqualifica��o do ENEM, mas pela m�-f� de alguns pouqu�ssimos candidatos. Muitas vezes, o estudante sai do assunto por �se perder� no texto, sem necessariamente ter desejado ridicularizar a prova. Por isso, n�o era necess�rio exclu�-lo do processo. Agora �. Neste ano, novamente, houve muitos casos de engra�adinhos. Foram exclu�dos 3.362. Como sempre estamos sujeitos a erro humano (ou mesmo, na ingenuidade, o avaliador deliberadamente desconsidera a parte desconectada, pois acha que n�o tenha sido por mal), este ano, vi que um moleque, que queria muito aparecer, escapou do zero injustamente. Podem ainda aparecer outros casos. No entanto, a grande maioria foi punida, sem d�vidas.
g) Outros motivos: sempre por vontade do candidato em ser desclassificado, por exemplo, fazer um desenho no lugar de uma reda��o.
Portanto, como dito acima, nota zero N�O est� relacionada � qualidade do ensino. Quando o sujeito tira nota zero, n�o � poss�vel saber se ele aprendeu ou n�o algo na escola. Muitas vezes, d� para imaginar que ele n�o aprendeu nada na vida, pois tenta desqualificar um processo s�rio apenas para aparecer na m�dia.
2. Por outro lado, podemos medir a qualidade dos candidatos a partir das notas obtidas. Neste ano, 4.438.176 obtiveram notas at� 600 pontos na reda��o do ENEM, enquanto 1.226.014 alcan�aram entre 601 e 1000 pontos. Esses s�o n�meros a serem considerados para ver que o brasileiro precisa se qualificar muito ainda no que se refere � produ��o escrita. Todavia, � absurdo (com todo o respeito a quem pensa assim) atribuir essa nota � escola p�blica. Primeiro, porque esses n�meros n�o separam ainda quem fez escola p�blica, quem fez escola privada, quem estava h� anos sem estudar ou mesmo quem ainda n�o concluiu o Ensino M�dio. Segundo, porque n�o se est� levando em conta quem realmente se importou de estudar para a prova daqueles que sequer tenham buscado qualquer informa��o a respeito da reda��o do ENEM. Por exemplo, o ENEM considera como uma das cinco compet�ncias avaliadas a elabora��o de uma proposta de interven��o para o problema levantado no tema, o que n�o costuma ser exigido em outros vestibulares tradicionais. Se o candidato n�o sabe disso, mesmo que a reda��o esteja boa, j� inicia perdendo 200 pontos de sua nota, ou seja, passa a concorrer a apenas 800 pontos, dos quais ser�o feitos outros descontos necess�rios. Portanto, facilmente, estar� abaixo de 600 pontos no final da avalia��o.
Saiba mais: ENEM � caso de sucesso mundial mesmo com campanha contr�ria da m�dia
3. Por fim, a m�dia est� desviando o real motivo de a maioria dos candidatos que receberam a nota zero: o tema. O problema � que o tema deste ano mexeu em um dos calcanhares de Aquiles dos poderosos da m�dia: a reflex�o sobre a publicidade infantil no Brasil. O tema � pouco discutido na sociedade, pois quem promove os espa�os midi�ticos de debate tem sistematicamente silenciado sobre esse assunto. O ENEM acertou na escolha do tema, mas, mesmo assim, a m�dia n�o coloca isso em discuss�o e prefere acusar nosso sistema de ensino. Por que ser�? Bem, isso eu prefiro deixar para os coment�rios de quem teve paci�ncia de ler at� aqui.
*Cassiano Ricardo Haag � professor de L�ngua Portuguesa, doutorando em Lingu�stica Aplicada pela UNISINOS e colaborou para Pragmatismo Pol�tico.