ENTREGUE MORTA AOS PAIS (...)
O feminicídio não expõe apenas a crueldade do machismo, mas traz à tona um ultraje e um deboche à condição feminina.
Não são homens feridos em seu orgulho, mas homens escarnecendo a independência das mulheres.
É como se não houvesse livre-arbítrio depois de um casamento, é como se o divórcio ainda não existisse.
Não são homens passionais que não aceitam ser trocados, mas homens frios, calculando um por um de seus passos de carnificina. Ainda que usem facas, chaves de fenda, armas de ocasião, empunhadas de última hora, estão querendo matar há muito tempo, ameaçam matar várias vezes antes de consumar o ato. Avisam de suas intenções, bloqueiam a esperança de recomeços de trajetória.
O que aconteceu em Montenegro não tem precedentes. Trata-se de uma cena do mais puro desprezo.
O ex-companheiro e assassino da Personal Trainer Débora Michels Rodrigues da Silva, 30 anos, fez questão de deixar o corpo na frente da casa dos pais dela, enrolado num cobertor.
Imagine os pais abrindo a porta da residência de manhã, na última sexta-feira (26/01/2024), para descobrir sua filha sem vida, no auge da carreira, apagada pela violência do seu ex-marido.
É como se o antigo genro devolvesse a filha aos pais, agora morta. Como se dissesse a eles “ela não será de mais ninguém, nem de vocês”.
A que ponto chegamos: um cadáver é um monumento da possessividade, um troféu do ciúme, uma estátua da aberração humana?
Provocou a dor da forma mais sádica possível. Não bastasse causar o pior sofrimento do mundo — que é perder uma filha na flor da idade, em condições absolutamente desnecessárias e prematuras, pela mais completa injustiça, por motivo torpe —, ainda escancarou a vítima em praça pública, entregando-a a um endereço, tal encomenda macabra.
Débora não pôde se mudar para o apartamento que havia escolhido alguns dias antes, e começar uma nova história depois de onze anos de convivência com o ex. Seus itens pessoais ficaram eternamente nas caixas de papelão. Sua coragem pelo divórcio encontrou a covardia no caminho.
Fabrício Carpinejar