Cansada de viver na sombra dos que a rodeavam, do acenar de cabe�a sempre concordante, da massa amorfa que se sentia ao n�o permitir-se o direito de discordar, longas eram as noites em que o afastamento que mantinha do Si verdadeiro e a raiva de si pr�pria cada vez mais se consumiam em dores e pranto. Para al�m de toda a tortura mental, chegava mesmo a castigar-se fisicamente ap�s ser�es com os amigos... "amigos!"... a palavra nem lhe dizia grande coisa... ap�s ser�es com os amigos em que desaparecia no meio de vozes e se mantinha invis�vel s� para n�o doer ao existir. Sim. Do�a existir. O receio do julgamento, o medo de n�o ser gostada custava mais que a invisibilidade. A curto prazo. Porque � noite esperava-a sempre o penoso castigo de n�o ter sido, de se olhar no espelho para n�o se reflectir nem reconhecer. Ent�o cortava-se, inflingia sofrimento f�sico a si pr�pria. S� para n�o sentir a dor maior. A que lhe fustigava a alma.
Exausta, angustiada e tra�da por si pr�pria, decidiu num dia de m�goa, que tinha de ser diferente. N�o podia mais ser parte de tamanha am�lgama indiferenciada. De tal modo se sentia pisada, como que imersa em �gua a ferver, que precisava com urg�ncia de emergir e respirar.
Tinha de ser diferente. S� n�o sabia como ser diferente. Come�ou, ent�o, por se opor a tudo e a todos. Mas a tentativa resultara pior. Pois empenhava-se em defender posi��es que nada tinham a ver com as suas (e que ali�s n�o sabia quais eram), apenas pelo simples facto de se serem opostas �s dos demais. Permanecia, assim, afastada de si pr�pria.
No entanto, a dado momento, a sua decis�o j� n�o chegava, a depend�ncia da aclamada "diferen�a" fazia-se sentir cada vez mais e rapidamente deu por si a ter comportamentos bizarros na rua, ao ponto de ter sido internada v�rias vezes compulsivamente...
Certa vez, num das suas fugas do hospital, fez o derradeiro esfor�o final, a �ltima investida - cortou pernas e bra�os. Queria ser diferente. Contudo, agora, j� nada fazia diferen�a... Um tronco inerte, rebolante sobre si pr�prio n�o fazia qualquer diferen�a. A morte j� acontecera h� muito tempo atr�s. Mas agora era poss�vel observar que do seu pr�prio corpo, mesmo antes da mutila��o derradeira, h� muito que nasciam correntes que n�o mais a poderiam deixar respirar
T�o apegado est� � regra aquele que a persegue, como o que a contraria a todo o custo... E o custo foi alto. Sem qualquer benef�cio. Pois a sua op��o n�o residira numa escolha, mas sim numa "n�o-escolha". As correntes cresceram. Cresceram. Fortaleceram. Cercaram e comprimiram o que restava do seu corpo at� mais n�o poder ser vista. At� desaparecer, poeira da poeira...
A paix�o expressa-se na l�grima. Porque a l�grima � o extremo. Vem sempre de dentro, portanto sabe onde fica a origem e como tudo conheceu um in�cio.
Foram os pensamentos de Ana naquela tarde sem l�grimas. Como n�o chorava fazia j� muito tempo, estava cada vez mais certa de que j� n�o tinha paix�o dentro de si. Assim como se tivesse secado por dentro, esvaziado o saco das l�grimas na infertilidade dos terrenos �ridos em que a sua alma se transformara.
Os dedos esguios sobre a folha branca de papel defronte de si tornavam-se ainda mais esguios, como se fossem bra�os de bailarina ou pesco�o de cisne. N�o t�o brancos como a imagem sugere, mas curvil�neos, magros, de uma eleg�ncia subtil e quase virgem. Segurou devagar o resto de carv�o que usara para os seus esbo�os e desenhou algumas rugas. Depois vincou o papel no lugar dos riscos desenhados. Este era o seu livro, aquele que contava a sua vida.
Quando terminou verificou que era um livro imenso, quase infinito. E nesse momento sentiu-se mais viva. Chorou para dentro e regou uma semente inconsciente.
Pensou para si pr�pria que talvez estivesse certa. Ou errada. E tamb�m que h� l�grimas invis�veis.
Impulso
A parede transparente abre-se para a minha fus�o com o mundo. As ra�zes crescem a partir dos dedos dos p�s. Minhas pernas troncos firmes, bases s�lidas e est�veis. Os meus bra�os, ramos aflitos, reticentes, coroados de l�grimas e de pensamentos gastos e perdidos. Os ramos estendem-se na direc��o do espa�o aberto, prolongam o peito que se se abre em grito de dor magnificamente entoado. Os bra�os do meu corpo estendem-se querendo abra�ar o ar em que me desvaneci, em que me sonho desfazer e transformar. Puxam as ra�zes inabal�veis. Agora apodrecidas. Meu corpo, �rvore pendente.