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Meu nome é Ernesto Barros. Tenho 85 anos.
E fui o último cliente do Café Aurora.
Mas esta história… não termina aí.

Durante décadas, todas as manhãs — religiosamente às 7h — eu ocupava a mesma mesa: a da janela, de onde dava pra ver a cidade acordando. Primeiro, ao lado de Marta, minha esposa. Depois, cercado pelos meus amigos.
E por fim… sozinho.

Marta partiu há dez anos. Levaram-na as mãos do tempo — mas me deixaram o silêncio. Mesmo assim, eu continuava indo. Porque certas ausências só doem menos onde a memória ainda respira.

O Café Aurora não era só um café. Era refúgio, era ritual, era lar.
Lá, o garçom já sabia meu pedido antes que eu abrisse a boca (café forte, sem açúcar). O dono só me olhava, e era como se dissesse: “bom dia, guerreiro”.

Foi nesse mesmo lugar que encontrei minha segunda família:
Raul, que era piada pronta e poesia engavetada.
Gustavo, astronauta de histórias improváveis — meio ficção, meio saudade.
E Arminda, a única capaz de calar três homens teimosos com um simples levantar de sobrancelha.
Éramos os “Cinco do Aurora” — um clube de sobreviventes e sonhadores.

A vida, porém, tem um talento cruel para desfazer encontros.
Marta foi a primeira. Depois, Raul — que nos deixou com um bilhete no bolso dizendo: “foi engraçado enquanto durou”.
Gustavo partiu em silêncio, levando com ele todas as constelações de suas mentiras encantadoras.
Arminda segurou minha mão no último outono e disse:
— Você vai ser o último. Porque alguém precisa manter o riso aceso por mais um tempo.

E eu fiquei.
Por lealdade. Por teimosia. Por amor.

Mesmo quando tudo ao redor mudou: o bairro perdeu o charme, os cafés viraram franquias sem alma, e os jovens andavam de fones nos ouvidos, surdos às histórias que os cercavam.

Até que, numa manhã qualquer, o dono do Aurora se aproximou com os olhos baixos:
— Ernesto… vamos fechar. Não dá mais.

Sorri com dignidade. E menti:
— Eu entendo.

Mas aquela noite… aquela noite me apertou o peito.
Sentei na poltrona onde Marta costumava bordar e o silêncio me engoliu.
Foi então que algo virou dentro de mim.

E se eu não aceitasse o fim?
E se, em vez de esperar que o mundo me esquecesse, eu lembrasse a ele o quanto ainda pode sentir?

No dia seguinte, chamei o filho do dono — um rapaz tímido, que carregava o cansaço do pai nos ombros.
— Quero comprar o Aurora — eu disse.
Ele riu. Achou que era piada.
— Estou falando sério. Mas não quero mudar nada. Só manter vivo o que ainda pulsa aqui dentro.

Três semanas depois, o Café Aurora renasceu.
Com uma nova placa, um novo propósito, mas a mesma alma.

Agora abrimos só pela manhã, como sempre foi.
Mas há rodas de leitura. Saraus. Conversas entre gerações.
Os velhos voltaram a contar histórias. Os jovens, a ouvir.
E o aroma do café — ainda forte e sem açúcar — voltou a misturar-se com o cheiro da memória.

Minha mesa continua ali, de frente para a esquina da vida.
Só que agora, nunca está vazia.
Nas quartas, conto histórias: minhas, de Marta, de Raul, de Gustavo, de Arminda.
Outras eu invento só pra ver os olhos dos netos dos vizinhos brilharem.

Não deixei fortuna. Não tenho terras nem medalhas.
Mas deixei uma coisa que vale mais que isso:
Um lugar onde a memória tem endereço.
Onde a saudade tem cadeira cativa.
Onde o tempo ainda tem sabor.

E às vezes, quando o sol entra pela vidraça e ilumina a mesa da janela,
juro que vejo Marta ali. De vestido florido. Sorrindo no reflexo.
Como quem sussurra:

— Agora sim, Ernesto. Agora você está vivo outra vez.

Creditos. José Rafael Trindade Reis (Facebook)


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